top of page

Fragmento-mar: edição e montagem de experiências na cidade

RAMOS, G. T. Fragmento-mar: edição e montagem de experiências na cidade. Ensaio apresentado no Seminário Interno do Laboratório Urbano, UFBA, em 2014.

Gabriel T. Ramos

Rabiscos de um método e de um conceito

Parece-nos interessante pensar uma aproximação à cidade contemporânea por interlocução dos indivíduos que margeiam uma lógica de produção da urbe, por meio de ações inventivas de sobrevivência, destoantes das postas enquanto hegemônicas, com enfoque em deslocamentos não automotivos pelo mar, sejam eles usuários ou trabalhadores, a fim de compreender uma relação pequena e corporal entre si e a cidade. A ideia de mar nestas linhas iniciais pretende compreender outros fragmentos de mar, bem como os sujeitos minoritários que tensionam esta produção de cidade.

 

Pontuamos, ainda em modo experimental, algumas questões que acreditamos serem pertinentes para se pensar essa pesquisa, a ser melhor desenvolvida durante a dissertação de mestrado, sem o intuito de respondê-las a priori, mas nos debruçarmos sobre suas possibilidades de desestabilização. Tais como: seria a experiência do deslocamento do mar um movimento, ou devir cidade, ativado somente por memórias e imagens? E para os trabalhadores marítimos, mar e cidade não seriam o mesmo? Dentro de um recorte menor e corporal, a experiência de uma escala, fora de um esquema de velocidade automotiva, não seriam inventivas e resistentes?

 

Tentamos nestes rabiscos iniciais pensar um meio de compreender essa experiência ensaiando o método do arriscar; tensionar as memórias e imagens, através dos vestígios nos corpos e da ideia de invenção; e refletir sobre os fragmentos que compõem o que entendemos por mar/cidade produzindo o conceito de fragmento-mar.

 

O arriscar e os espaços corpóreos do experienciar

Arriscar, provar, tentar, ensaiar. Dispomo-nos de verbos unívocos entre si e traduzíveis, de semelhante modo, ao experienciar. E, tomando a primeira ação enunciada, confiamos numa possível leitura do arriscar como um exercício da própria experiência: uma experiência criativa; pois pensamos criar como resistir (DELEUZE; PARNET, 1995).

 

Arriscar para nós – diferentemente do que é conotado negativamente ao seu substantivo (o risco como uma ideia de perigo, ímpeto ou precipitação) – é tomar a experiência tal qual um meio e por sobre ela traduzir-se: em corpo e chão. Assim, arriscamos outros modos de viver (à margem), ao propormos uma perfuração nos envoltórios que tramam insistentemente em nossos corpos uma complexa, punitiva e coercitiva rede de produção de imagens, morais, costumes e produtos hegemônicos: modelos de ser e existir, com evidente enfoque em um consumo imposto (de bens materiais, de saberes, etc.), balizando ou mesmo nulificando nossas possibilidades de experienciar a cidade.

 

Pensamos no verbo arriscar, portanto, como numa espécie de jogo em que a cidade nos dá as cartas e com ela jogamos. Não um jogo de vencedor e perdedor; tampouco hierárquico, mas, sim, propositivo. Arriscar como um jogo de perder tempo e ganhar espaço; e o território a se conquistar não se trata de um espaço físico, mas, sim, o próprio espaço do experienciar.

 

Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é “o que nos passa”, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é "ce que nous arrive”, o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como “aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos (BONDÍA, 2022, pp. 20-28).

 

Importa-nos investigar e cartografar – mesmo ao acreditarmos que isto acontece de modo efêmero – os espaços corporais da experiência enquanto uma potência criativa ligados a imagens e memória – esses vestígios que compõem nosso território existencial –, a fim de tensionar sua inventividade e capacidade de desestabilizar a lógica das relações de poder (FOUCAULT, 1995) que nos regem.

 

Ritornelos: arriscar e improvisar

Um caminho oportuno para analisarmos as relações de poder se conformaria por meio de uma oposição de estratégias (Idem), ou seja, tensionamentos das ordens vigentes compreendidas enquanto uma normalidade (sanidade, legalidade, relações de poder) por suas oposições marginais (insanidade, ilegalidade, formas de resistência).

 

Nossos corpos – estes que afetam e são afetados por diversos vetores, sejam eles poderes, ações, fluxos, intensidades, ou agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1995), e descodificam os saberes, numa contínua criação de territórios – são atravessados por estas marcas e compõem nossa existência. Há uma hegemonia nesses atravessamentos que recebemos, produzimos e transmitimos, quer seja pelos modos de ser ou de fazer. Em disputa com essa hegemonia, por meio da oposição de estratégias, acreditamos no arriscar em contraponto a um estado de assepsia que tendemos a perceber em nossos corpos para com os espaços públicos; o arriscar como uma possível forma de resistência respondendo a relações de poderes vigente. E pensamos também o improvisar como uma pista dessa resistência criativa para o processo de desterritorialização e reterritorialização (Idem).

 

Imaginamos o arriscar a ir para o mar desde os tempos das Grandes Navegações em busca de novos territórios, especiarias e tesouros, em que se criavam diversas histórias sobre o mundo desconhecido do mar. Mesmo atualmente, ir para o mar é sempre arriscado: estar sujeito a intempéries e inconstâncias. Contudo, há para nós uma certa especificidade nos ofícios do mar (marinheiros, remadores, marujos, ou mesmo piratas), um certo grau de criatividade e improviso dados também pela experiência, que ainda rompem a uma lógica preeminente da velocidade, e seria uma pista de um arriscar que nesta pesquisa nos interessa mais.

 

Experiências: memórias e imagens como invenções

Somos corpos presentes nas cidades, em meio a emaranhados de movimentos, sensações, percepções e afecções: do cheiro de maresia à brisa quente de verão. Deixamos rastros e sabemos que somos tanto corpos como cidades; tanto chão percorrido quantas horas demoradas sentados num banco da praça. Traduzimos isso como inventividades da memória; num espaço-tempo passado que só existe enquanto presente, sendo, portanto, sendo também por este transformado. Memória, assim, também é invenção; é o encontro de um “Outrora” com um “Agora” (DIDI-HUBERMAN, 2011) ou de um momento presente ativo com um passado reminiscente.

 

Assumimos, portanto, a hipótese da memória como uma dessas articulações dos espaços corporais da experiência, presente e contínua entre corpos e cidades, e, além disso, apostamos no permanente arranjo de inscrições simultâneas e por esses atualizáveis enquanto respostas a um processo de assujeitamento ou seja, indícios das resistências corpóreas ao processo de espetacularização urbana, conformando cartografias do corpo ou corpografias urbanas (JACQUES, 2007).

 

Na baía alguém passeia de barco. De olhos fundos e secos; respira com dificuldade; a brisa sopra. A 350 quilômetros, 35 anos antes, o fazendeiro engatilha a espingarda, faz pontaria e atira. A brisa sopra. Naquela casa ali alguém toca piano. “Eu não aguento mais viver sem ti”, a empregada repete a mesma frase. De olhos fundos e secos, os lábios abertos, movimenta os dedos para frente e para trás. A brisa sopra: depois a brisa continuará a soprar; em seguida, a brisa recrudesce a intensidade, a ponto de percepção: finalmente, eis que a brisa sopra (ALMEIDA, 1988, s/p).

 

Apostamos ainda nas produções de imagens dos territórios atualizadas nos espaços corporais da experiência por discursos e práticas, inventados por mídias e narrativas (cinema, literatura, fotografia, intervenções artísticas, publicidade, etc.), como o excerto acima retirado do livro Blissful Agony; memórias inventadas e projetadas enquanto imagens. A literatura fragmentária nos permite pensar numa experiência dupla e duplamente inventada: primeiro pois a experiência só se comunica por uma narrativa e esta já seria uma invenção e segundo ao se articular ela provoca uma imagem, logo, uma segunda experiência ao usuário/leitor/fruidor.

 

Portanto, se pensamos o arriscar /improvisar enquanto ato do experienciar – como o que nos acontece em corpo presente (usuários e trabalhadores) e no experienciar pela narrativa – e como uma prática resistente, importa-nos, portanto, qualificar também a narrativa na paridade arriscar / improvisar como uma ética da resistência, já que “dizer não constitui a forma mínima de resistência” (FOUCAULT, 1984, pp. 26-30): para resistir é preciso criar. E mais do que criar/inventar/produzir/rememorar memórias e imagens é preciso que estas sejam duplamente coesas a resistência; uma prática menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977) e a contrapelo; tanto de compreensão e mapeamento dessas interlocuções com a cidade por meio destes usuários e trabalhadores quanto de suas narrações.

Fragmento-mar, fragmento-cidade

Na literatura, encontramos a ideia de fragmento não como um gênero literário, mas sim como uma prática, presente em Nietzsche, Artaud, Rimbaud e Paul Valèry; como fruto da Modernidade e indo de encontro a uma lógica vigente à época, de linearidade e continuidade. No cinema, ao tomarmos os filmes de Jean-Luc Godard, observamos incessantemente uma montagem descontínua de cenas que também nos remete uma autonomia dos planos. Tal como propõem essas linguagens, para nós, o fragmento não se apresentaria como parte de um todo, com um início ou fim; mas sim um meio nele próprio e repleto de significados ou atravessamentos de sentidos (MENDES, 2014).

 

A ideia de totalidade é, portanto, descartada e o que nos interessa é pensar as possíveis conexões e ativações do fragmento, aqui compreendido enquanto um território mas também um vetor de fluxos ativados pelas memórias e as imagens, com aqueles que o experienciam.

 

Ao tomarmos a experiência do deslocamento pelo mar como uma prática resistente (ou menor, ao ir de encontro às práticas automotivas) nos aparenta razoável pensar neste devir cidade que acontece nesse momento. Por exemplo: ao termos acesso à literatura sobre a baía e imaginarmos as múltiplas entradas do que seria a cidade estando num barco sem motor (a memória da terra firme; o deslumbre da paisagem por outro ângulo; a percepção de outros sentidos que não somente o visual, ao estar em contato com a brisa; o barulho muito menor do que o da cidade; etc.) e acreditamos ter, assim, neste fragmento-mar uma relação a um fragmento-cidade; ou ainda, sabemos o que o fragmento-mar não é em comparação a um fragmento-cidade. Pensamos numa dupla articulação pois a imagem e a memória são referenciais.

 

Dessa articulação fragmentária, salientamos uma intenção e um recorte para se pensar a cidade por meio de seus interlocutores. Este fragmento além de referencial, seria também temporal – um fragmento de um período específico daquela experiência – e espacial – um fragmento num determinado território que é um espaço de fluxo criado tanto pelo movimento do mar e da cidade, quanto do movimento da memória e das imagens, que são sempre montadas e remontadas; inventadas e reinventadas.

 

Assim, um meio a se considerar para esboçar esse conceito fragmentário seria tomar a ideia de arriscar estar nesse espaço, experienciá-lo e produzir uma narrativa – tanto por quem trabalha quanto por quem o usa e, por consequência, provocar uma segunda experiência. Mais do que uma resposta ou uma ideia de uma intervenção urbanística sobre o lugar e seus usuários, esta aproximação se assemelha muito a uma ideia de uma cartografia das experiências, em que possamos pensar e organizar as diversas interlocuções (pessoais, de usuários, de trabalhadores) e a partir disto – como numa peça com várias vozes ou num filme com várias tomadas – trabalhar numa lógica de uma produção de um urbanismo enquanto edição e montagem.

 

Reflexões sobre uma experiência de montagem e edição Uma pista para o início deste conceito de fragmento enquanto um urbanismo menor e vinculada a uma edição e uma montagem, termos provenientes do cinema, teve início em 2012, numa experiência de projeto de graduação dentro da faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Espírito Santo. Contudo, a experiência foi pessoal e partiu de um olhar único, pelas câmeras, edição e realização de um vídeo. [1]

 

Este trabalho foi uma experiência de apreensão da realidade dos remadores da Baía de Vitória-ES, conectada a outras realidades com situações de resistência e produção criativa nos espaços públicos em outras localidades e a ideia de descontinuidade é presente na sequência de frames, tornando mais complexa a compreensão imediata das realidades específicas, contudo elas se traduzem conjuntamente mesmo sendo independentes cada uma.

 

Neste ponto, numa possível atualização dessa ideia de outrora, enxergamos como potente esse atravessamento das diferentes narrativas (orais, literárias, visuais) e diferentes pontos de vista dos interlocutores – em experiências múltiplas –, numa espécie de documento aberto e de livre acesso e escolha, contudo, dentro de uma estrutura demarcada, justamente para demonstrar uma intencionalidade na proposta.

 

Com isto, a princípio, podemos tensionar alguns conceitos como participação (ao pensarmos na disposição de outros pontos de vista); transversalidade (ao apontarmos alguns momentos hierárquicos, contudo em movimento); e história (ao pensarmos várias histórias de várias pessoas, podemos apontar a ideia de historiografia, explicitada a seguir).

 

Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ e, sobretudo, não significa ‘reencontrar-nos’. A história será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo (...). É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar (FOUCAULT, 1979, p. 27).

Gostaríamos, portanto, de propor com esse ensaio uma abertura na forma de pensar a cidade contemporânea, apostando na inserção de diversos vetores de sua ativação, articulados em memórias e imagens dos interlocutores atrelados a uma prática resistente – em nosso recorte, vinculados a atividades não motorizadas no mar. Não pensamos em uma, mas sim num arcabouço de narrativas, traduzidas por diversas vozes, complexificando ainda mais a apreensão. Assim, esse editor seria o indivíduo capaz de cruzar essas intenções que sempre existem e pensar numa outra maneira de discutir a produção desta cidade.

[1] O vídeo se trata de "desinvento: por uma aventura na cidade contemporânea", realizado na Baía de Vitória-ES em 2013 (link para vídeo completo: https://www.youtube.com/watch?v=Igw9y_vOis8).

 

Referências

ALMEIDA, Amylton de. Blissful Agony. Fundação Ceciliano Abel de Almeida (UFES): Vitória, 1988, 2a edição.

BONDÍA, Jorge L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação, 2002, no 19, pp. 20-28.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Abecedário de Gilles Deleuze. Éditions Montparnasse, Paris. Filmado em 1988-1989. Publicado em: 1995.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Ed.34, 1997.

______________________________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.

______________________________. Kafka: por uma literatura menor. (Título original: Kafka - pour une littérature mineure). Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Vera Casa Nova, Márcia Arbex, tradução; Consuelo Salomé, revisão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUSS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

_________________. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Org.: Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.27.

_________________. O que é um autor? (Conferência, 1969). Disponível em: <http://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2013/04/foucault-o-que-c3a9-um-autor.pdf> Acessado 16.ago.2014.

_________________. Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de la identité”. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; trad. F. Durant-Bogaert). The advocate, no 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58.

JACQUES, Paola B. Corpografias urbanas: o corpo enquanto resistência. In: Cadernos PPG- AU/FAUFBA / Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. - Ano 5, número especial - Ana Clara Torres Ribeiro (Org.), Salvador, 2007.

MENDES, Marta. Fragmento: esboços para uma configuração do conceito. Disponível em: <http://www.estc.ipl.pt/escola/documentos/ciac/veronica/09_marta_mendes.pdf>. Acessado em 13.ago.2014.

PESSOA, Fernando. Cancioneiro. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990a.

bottom of page